Friday, April 3, 2020

NÁUFRAGO

Sophia de Mello Breyer Andresen
Mar Novo (1958)

Agora morto oscilas 
Ao sabor das correntes 
Com medusas em vez de pupilas.

Agora reinas entre imagens puras
Em países transparentes e de vidro, 
Sem coração e sem memória 
Em todas as presenças diluído.

Agora liberto moras
Na pausa branca dos poemas.

Teu corpo sobe e cai em cada vaga,
Sem nome e sem destino
Na limpidez da água.

Aquele que partiu
Precedendo os próprios passos como um jovem morto
Deixou-nos a esperança.

Ele não ficou para connosco
Destruir com amargas mãos seu próprio rosto.
Intacta é a sua ausência 
Como a estátua de um deus
Poupada pelos invasores de uma cidade em ruinas.
Ele não ficou para assistir
À morte da verdade e a vitória do tempo.

Que ao longe
Na mais longínqua praia
Onde só haja espuma sal e vento
Ele se perca tendo-se cumprido 
Segundo a lei do seu próprio pensamento.

E que ninguém repita o seu nome proibido.


Saturday, March 21, 2020

A MULHER NA NOITE

Vinicius de Moraes


Eu fiquei imóvel e no escuro tu vieste.
A chuva batia nas vidraças e escorria nas calhas – vinhas andando e eu não te via
Contudo a volúpia entrou em mim e ulcerou a treva nos meus olhos.
Eu estava imóvel – tu caminhavas para mim como um pinheiro erguido
E de repente, não sei, me vi acorrentado no descampado, no meio de insetos
E as formigas me passeavam pelo corpo úmido.
Do teu corpo balouçante saíam cobras que se eriçavam sobre o meu peito
E muito ao longe me parecia ouvir uivos de lobas.
E então a aragem começou a descer e me arrepiou os nervos
E os insetos se ocultavam nos meus ouvidos e zunzunavam sobre os meus lábios.
Eu queria me levantar porque grandes reses me lambiam o rosto
E cabras cheirando forte urinavam sobre as minhas pernas.
Uma angústia de morte começou a se apossar do meu ser
As formigas iam e vinham, os insetos procriavam e zumbiam do meu desespero
E eu comecei a sufocar sob a rês que me lambia.
Nesse momento as cobras apertaram o meu pescoço
E a chuva despejou sobre mim torrentes amargas.
Eu me levantei e comecei a chegar, me parecia vir de longe
E não havia mais vida na minha frente.
Rio de Janeiro, 1935

PROCURA


Carlos Drummond de Andrade 
A Vida Passada a Limpo (1958)


Procurar sem notícia, nos lugares 
onde nunca passou;
inquirir, gente não, porém textura,
chamar à fala muros de nascença,
os que não são nem sabem, elementos
de uma composição estrangulada.

Não renunciar, entre possíveis,
feitos de cimento do impossível, 
e ao sol-menino opor a antiga busca, 
e de tal modo revolver a morte 
que ela caia em fragmentos, devolvendo 
seus intatos reféns - e aquele volte.

Venha igual a si mesmo, e ao tão-mudado, 
que o interroga, insinue
a sigla de um armário cristalino, 
além do qual, pascendo beatitudes, 
os seres-bois completos, se transitem, 
ou mugidoramente se abençoem.

Depois, colóquios instantâneos 
liguem Amor, Conhecimento, 
como fora de espaço e tempo hão de ligar-se, 
e breves despedidas 
sem lenços e sem mãos
restaurem - para outros - na esplanada 
o império do real, que não existe.

Wednesday, March 18, 2020

NUDEZ

Carlos Drummond de Andrade
A Vida Passada a Limpo (1958)


Não cantarei amores que não tenho,
e, quando tive, nunca celebrei.
Não cantarei o riso que não rira
e que, se risse, ofertaria a pobres.
Minha matéria é o nada.
Jamais ousei cantar algo de vida:
se o canto sai da boca ensimesmada,
é porque a brisa o trouxe, e o leva a brisa,
nem sabe a planta o vento que a visita.

Ou sabe? Algo de nós acaso se transmite,
mas tão disperso, e vago, tão estranho,
que, se regressa a mim que o apascentava,
o ouro suposto é nele cobre e estanho,
estanho e cobre,
e o que não é maleável deixa de ser nobre,
nem era amor aquilo que se amava.

Nem era dor aquilo que doía;
ou dói, agora, quando já se foi?
Que dor se sabe dor, e não se extingue?
(Não cantarei o mar: que ele se vingue
de meu silêncio, nesta concha.)
Que sentimento vive, e já prospera
cavando em nós a terra necessária
para se sepultar à moda austera
de quem vive sua morte?
Não cantarei o morto: é o próprio canto.
E já não sei do espanto,
da úmida assombração que vem do norte
e vai do sul, e, quatro, aos quatro ventos,
ajusta em mim seu terno de lamentos.
Não canto, pois não sei, e toda sílaba
acaso reunida
a sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas.

Amador de serpentes, minha vida
passarei, sobre a relva debruçado,
a ver a linha curva que se estende,
ou se contrai e atrai, além da pobre
área de luz de nossa geometria.
Estanho, estanho e cobre,
tais meus pecados, quanto mais fugi
do que enfim capturei, não mais visando
aos alvos imortais.

Ó descobrimento retardado
pela força de ver.
Ó encontro de mim, no meu silêncio,
configurado, repleto, numa casta
expressão de temor que se despede.
O golfo mais dourado me circunda
com apenas cerrar-se uma janela.
E já não brinco a luz. E dou notícia
estrita do que dorme,
sob placa de estanho, sonho informe,
um lembrar de raízes, ainda menos
um calar de serenos
desidratados, sublimes ossuários
sem ossos;
a morte sem os mortos; a perfeita
anulação do tempo em tempos vários,
essa nudez, enfim, além dos corpos,
a modelar campinas no vazio
da alma, que é apenas alma, e se dissolve.  


Thursday, February 27, 2020

ELEGIA DO SILÊNCIO

Federico García Lorca
Livro de Poemas (1921)


Silêncio, onde levas
teu cristal empanado 
de risos, de palavras
e soluços da árvore?
Como limpas, silêncio,
o orvalho do canto
e as manchas sonoras 
que os mares distantes
deixam sobre a alvura
serena de teu manto?
Quem fecha tuas feridas 
quando sobre os campos 
alguma velha nora
crava seu lento dardo
em teu cristal imenso?
Aonde vais se no ocaso 
te ferem os sinos
e quebram teu remanso
as bandas de coplas
e o grande rumor dourado
que cai sobre os montes
azuis soluçando?

   O ar do inverno
faz teu azul em pedaços,
e trunca tuas florestas
o lamentar calado
de alguma fonte fria.
Onde pousas tuas mãos,
o espinho do riso
ou a calorosa machadada 
da paixão encontras.
Se te diriges para os astros
o zumbido solene 
dos azuis pássaros 
rompe o grande equilíbrio
de teu escondido crânio.

   Fugindo do som 
és o próprio som,
espectro de harmonia, 
fumaça de grito e canto.
Vens para dizer-nos
nas noites escuras 
a palavra infinita 
sem alento e sem lábios.

   Tradeado de estrelas
e maduro de música,
onde levas, silêncio,
tua dor extra-humana,
dor de estar cativo
na aranha melódica, 
cego já para sempre
teu manancial sagrado?

   Hoje arrastam tuas ondas 
turvas de pensamento
a cinza sonora
e a dor de antanho.
Os ecos dos gritos
que para sempre se foram. 
O estrondo remoto
do mar, mumificado.

   Se Jeová adormeceu,
sobe ao trono brilhante,
quebra-lhe na cabeça
um luzeiro apagado, 
e acaba seriamente 
com a música eterna, 
a harmonia sonora 
de luz, e enquanto isso, 
volta a teu manancial,
onde na noite eterna, 
antes de Deus e do tempo, 
manavas sossegado.

METAMORFOSE

Cecília Meireles
Viagem (1939)


Súbito pássaro
dentro dos muros
caído,

pálido barco 
na onda serena
chegado.

Noite sem braços!
Cálido sangue
corrido.

E imensamente
o navegante 
mudado.

Seus olhos densos 
apenas sabem 
ter sido.

Seu lábio leva
um outro nome 
mandado.

Súbito pássaro 
por altas nuvens 
bebido.

Pálido barco 
nas flores quietas 
quebrado.

Nunca, jamais 
e para sempre 
perdido
o eco do corpo
no próprio vento
pregado.

PASSEIO
Cecília Meireles
Viagem (1939)


Quem me leva adormecida
por dentro do campo fresco,
quando as estrelas e os grilos
pulpitam ao mesmo tempo?

O céu dorme na montanha,
o mar flutua em si mesmo,
o tempo que vai passando
filtra a sombra nas areias.

Quem me leva adormecida
sobre o perfume das plantas,
quand, no fundo dos rios
a água é nova a cada instante?

Não há palavras nem rostos:
eu mesma não me estou vendo.
Alguém me tirou do corpo, 
fez-me nome, unicamente,

nome, para que as perguntas
me chamem, com vozes tristes,
e eu não me esqueça de tudo
se houver um dia seguinte.

O céu roda para oeste:
as pontes vão para as águas.
O vento é um silêncio inquieto
com perspectivas de barcos.

Quem me leva adormecida
pelas dunas, pelas nuvens,
com este som inesquecível
do pensamento no escuro?